quarta-feira, 3 de junho de 2009

O NÚMERO DE SUICÍDIO É MAIOR DO QUE SE DIVULGA

Imprensa e suicídio, uma abordagem ética e técnica
Vanessa Canciam (*)
Há pouco mais de um ano, acontecimento ocorrido em Nova York, em plena Times Square, trouxe de volta a discussão ética sobre um polêmico tema presente no dia-a-dia da cobertura jornalística. Ele volta de tempos em tempos. E voltou semana passada no Brasil.
Em 22 de agosto de 2002, Allen Myerson, 47 anos, editor de economia do New York Times, jogou-se do 15º andar do prédio onde trabalhava por volta das 10h. Seu corpo foi resgatado poucos minutos depois no telhado do estacionamento do Times. A conclusão da polícia foi a de que realmente se tratava de suicídio.
No dia seguinte, os jornais americanos tinham abordagens distintas do fato, como é de se esperar de publicações com linhas editoriais diferentes. Muitos leitores e profissionais de imprensa consideraram, por exemplo, que a cobertura do Washington Post havia sido exagerada e sensacionalista, enquanto outros criticaram a postura extremamente reservada do New York Times. Iniciava-se então uma série de debates – nos EUA, em outros países, no Brasil – sobre a importância e a melhor de informar sobre atos suicidas.
Em grande parte das redações, é recomendado aos jornalistas que evitem ao máximo a divulgação de suicídios. A justificativa para esse procedimento se baseia na hipótese de que qualquer notícia sobre o assunto pode vir a ser o estopim de uma série de outros atos semelhantes. Entre as normas editoriais do grupo RBS (Rede Brasil Sul de Comunicações), por exemplo, consta o seguinte tópico: "As notícias sobre suicídios – a não ser em casos excepcionais – não devem ser divulgadas ou destacadas. (É fato comprovado que a divulgação de suicídios estimula a morte de suicidas potenciais)". O manual de Rádio e Televisão do Sistema Globo (principal grupo de mídia do Brasil) também faz referência ao tema: "Em princípio, não se deve divulgar casos ou tentativas de suicídio. Qualquer possibilidade de exceção deve ser cuidadosamente avaliada pela direção de jornalismo da emissora".
Fator humano
A primeira crítica que pode ser feita a essa prática é que não é fato comprovado nem existe consenso entre profissionais de saúde quanto à influência da mídia no estímulo ao suicídio. O psiquiatra Jacob Seldin, ouvido pela jornalista Miriam Abreu para o sítio brasileiro Comunique-se, por exemplo, não acredita na afirmação. "Desde que seja feita de forma ética não vejo problema." Miriam ouviu também o coordenador da área de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Unicamp, Wolgran Alves Vilela. "Acho que histórias que envolvem suicídio devem ser divulgadas sim, desde que não explorem o caso", diz ele. Vilela duvida também de que a divulgação provoque"efeito dominó". "A divulgação tem mais valor positivo do que negativo, já que aguça o interesse de estudiosos e autoridades, que tentam prevenir mais casos de suicídio", diz o psiquiatra.
Psiquiatras e sociólogos norte-americanos, em entrevista ao jornalista Mark Miller, manifestaram opinião diferente. Madelyn Gould, da Universidade de Colúmbia, por exemplo, acredita que qualquer detalhe de um suicídio publicado na imprensa pode provocar outro suicídio. Seguindo essa linha de pensamento, David Philips, sociólogo da Universidade da Califórnia, apresenta dados de pesquisa segundo a qual há um aumento de 2% em casos de suicídio quando uma história semelhante aparece na imprensa.
O psiquiatra, professor e autor dos livros Do suicídio e O que é suicídio, Roosevelt Cassorla, acredita que a influência da mídia pode existir em alguns casos, como acontece com a divulgação de mortes de pessoas famosas. "No caso de pessoas pouco conhecidas a influência é menor, mas há uma tendência mundial a não noticiar esses casos nos jornais, também por respeito à pessoa suicida e a sua família", diz Cassorla. O psiquiatra aponta também que uma notícia pode influenciar apenas pessoas com alguma predisposição ou algum grau de perturbação mental ou emocional.
Não há consenso sobre o assunto. E, ainda que tal consenso existisse, não seria correto utilizá-lo como único parâmetro para guiar a cobertura da imprensa.
Eugênio Bucci, no livro Sobre ética e imprensa, faz uma série de críticas a esse procedimento estritamente teleológico e utilitarista. Estará agindo eticamente um jornalista que deixa de publicar uma informação por considerar que ela provocará conseqüências negativas? Segundo Bucci, "jornalistas não são profetas para prever com eficácia as conseqüências de uma divulgação". E ainda: "O jornalista não age para obter resultados que não sejam o de bem informar o público; ele não tem autorização ética para perseguir outros fins que não esse".
Partindo da premissa de que o jornalista não age para obter resultados que não sejam o de bem informar o público, uma pergunta fica evidente: suicídios preenchem os critérios de noticiabilidade que definem qual informação se caracteriza como uma notícia? Por interesse jornalístico, entende-se que a conjugação de um ou mais elementos como ineditismo, atualidade, universalidade, proximidade, utilidade, intensidade, difusão, interesse público e fator humano.
Divulgação franca
Um suicídio coletivo de radicais religiosos, por exemplo, seria uma notícia, já que preenche alguns dos critérios citados acima. Na mesma situação estão os suicídios cometidos por pessoas conhecidas do público, como políticos, atores, músicos. Como ocultar a causa mortis do ex-presidente Getúlio Vargas, ou do roqueiro Kurt Cobain? E como tratar suicídios de pessoas desconhecidas? Seria correto não divulgar um suicídio ocorrido num local público, como o de Allen Myerson?
À primeira vista, o ato do suicídio parece interessar apenas a quem o pratica e a seus parentes, não havendo motivo que justifique a divulgação – pode parecer invasão de privacidade, apenas com o objetivo de promover espetáculo sensacionalista que dê conta da curiosidade perversa do público. Entretanto, até que ponto o suicídio de qualquer pessoa deve ser entendido como algo estritamente pessoal que não seria de interesse das outras pessoas de uma sociedade?
Várias perspectivas que enfocam o assunto consideram o suicídio como um fenômeno social, e não individual, o que justificaria sua divulgação. Kalina e Kovadloff, no livro As cerimônias da destruição, afirmam que "a psiquiatria até o momento encarou o suicídio como um fenômeno individual. Entretanto, as intensas pressões que as condutas coletivas ou os fatos sociais exercem sobre nossa vida privada e profissional permitem demonstrar, sem esforço, a insuficiência teórica de vê-lo como uma patologia exclusivamente individual".
Cleto Brasileiro Pontes, no livro Suicídio em Fortaleza, também vê o suicídio como um ato de interesse público: "O ato de se matar não deve ser visto como algo isolado e tampouco como uma patologia psíquica simplesmente, onde o ato se acaba na individualidade do suicida. Acreditamos, pois, que através dele é permitido compreender o grau de satisfação em que vivem os integrantes de uma comunidade. De uma forma mais precisa, poderíamos dizer que este ato serve de parâmetro para determinar a saúde mental de uma população".
Kalina e Kovadloff apontam também que o suicídio deve deixar de ser um tema tabu para que possa ser tratado como um problema de saúde social. "Se é certo que na atualidade a patologia suicida é uma patologia social, então a terapêutica não pode ser senão comunitária. Sua prática ultrapassará o campo do consultório individual para impor como necessários o contato do médico com a família do paciente, as autoridades políticas, educacionais e, de modo geral, com todas as áreas responsáveis e representativas da vida institucional de uma nação. Com sua morte, o suicida não nos diz somente que já não se suportava mais. Também fala de nós. Demonstra por um lado que não podia continuar nos tolerando".
O suicídio, assim como outras manifestações sociais – a loucura, os assassinatos, crimes hediondos – questionam diretamente a própria estrutura social. Sendo assim, é possível afirmar que se trata de um assunto de interesse público na medida em que reflete uma situação social que não deve ficar sob sombras. Na opinião de Cassorla, por exemplo, o ideal nesses casos é acrescentar à notícia uma chamada para a necessidade de procura de alguma ajuda por parte dos eventuais leitores – ou diretamente ou em declaração de algum especialista. Talvez essa seja uma das saídas para se fazer, com responsabilidade, uma divulgação franca e aberta sobre assuntos delicados. Isso porque a história já tem dado provas de que a desinformação só contribui para a criação de mitos que nada tem a ver com a realidade.

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